sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

CARTA A LIMA BARRETO



Meu velho amigo Lima, este ano completa 90 anos da tua morte. Tu foste sem dúvida - em minha franca opinião - um dos maiores, senão o melhor escritor maldito de todos os tempos! Pode até soar algum pedantismo ou exagero meu, mas reintero o que digo revisitando com mais apuro o Teu memorável e impactante, “Cemitério dos Vivos.” Esta tua obra, especificamente, é de uma profundidade humana sem precedentes. Só  outro livro causou-me similar impressão e aqui me refiro à Recordações da Casa dos Mortos, do nosso ilustre Dostoievski. Ambas tratam da natureza humana com realismo e intensidade assombrosa.  
O Cemitério dos Vivos é um livro de tuas memórias escrito quando tu estivestes por inúmeras vezes internado em casas de saúde mental, naqueles amargos anos de 1919 a 1920, no Rio de Janeiro, em decorrência de tuas fortes crises nervosas movidas por teu alcoolismo crônico e desenfreado.  Ainda sim, foste implacável ao descrever tua experiência com os loucos, já denunciando naquela época, as mazelas, as injustiças sociais, os maus tratos, o preconceito e a falta de uma política humanizadora para com essas instituições de saúde. De características assumidamente realistas, O Cemitério dos Vivos – como todas as tuas outras grandes obras, é também cimentado em tuas claras convicções cientificistas e deterministas, no que diz respeito às ações de teus personagens, sendo eles, meros produtos do meio, das leis naturais, do momento histórico, da hereditariedade e de tudo o mais que podia ser cientificamente comprovado.  Em suma: o homem condicionado pelo meio ambiente e pelo estigma hereditário que se renovam sem parar no ciclo morte-vida; Eros e Tanatos. Embora alguns críticos literários, ainda teimem apontar a tua obra como um autobiografismo efetivo – devido, é claro, a tua obsessão constante pela investigação do preconceito racial, onde tornastes o protagonizador de  tua própria tragédia humana, ainda assim, teus escritos são necessários para compreendermos melhor as válvulas comportamentais do pensamento moderno, e assim revisitarmos e atualizarmos alguns conceitos à luz de Taine.
Não obstante, tu és um investigador da alma humana. O Cemitério dos Vivos é rico em detalhes e de extremo realismo. É interessante ainda observar como os teus escritos há tanto tempo realizados pode ainda conter tantas semelhanças com a atualidade. Cabe aqui observamos também a tua genialidade, que mesmo tendo vivido em século tão distante do meu, pudesse compor um cenário que ultrapassasse a barreira do tempo, tornando-se um escritor necessário e atual.
Não foi o álcool que te matou, meu velho, mas a indiferença, a estupidez, e a incompreensão imensurável das pessoas para com a tua literatura. Eu sei como são essas coisas!
Deleito-me agora com estas tuas linhas:

(...) Voltei para o pátio. Que coisa, meu Deus! Estava ali que nem um peru, no meio de muitos outros, pastoreado por um bom português, que tinha um ar rude, mas doce e compassivo, de camponês transmontano. Ele já me conhecia da outra vez. Chamava-me você e me deu cigarros. Da outra vez, fui para a casa-forte e ele me fez baldear a varanda, lavar o banheiro, onde me deu um excelente banho de ducha de chicote. Todos nós estávamos nus, as portas abertas, e eu tive muito pudor. Eu me lembrei do banho de vapor de Dostoiévski, na Casa dos Mortos. Quando baldeei, chorei; mas lembrei de Cervantes, do próprio Dostoiévski, que pior deviam ter sofrido em Argel e na Sibéria.

            Ah! A Literatura, ou ela me mata ou me dá o que eu peço dela!”

 Do teu livro, O Cemitério dos Vivos

Manaus, 15 de Fevereiro de 2013

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2013


 COMO EXPLODIR CAIXAS ELETRÔNICOS

Ah, meu velho, tua fórmula continua seca. Direta. Um soco no estômago de quem vacila.  Vômito de um bêbado liquidado. Vísceras de amoras. Diarréia de palavras polifônicas. E algo mais de visceral e verdadeiro. Assim defino, Como Explodir Caixas Eletrônicos, teu mais recente trabalho.  Tu que também escrevestes o Sindicato dos Inválidos e o livro de Tanatos quando ainda moravas nos porões do Chalé, da Sete de Setembro. Pois o plano é este, riscado no papel que está no prato pronto para ser digerido. A colher sai e entra na boca, nesse círculo vicioso das tragédias humanas. Como é gostoso comer as coisas em pedaços... Pois esqueçamos por um instante o deleite estético. Tuas palavras nos são servidas realisticamente em pratos duros de hospícios.  A beleza está na feiúra! Na fome! Na loucura da verdade dita! Tua obra trata, com efeito, demonstrar dolorosamente a realidade das coisas. As palavras brigam raivosas e famintas dentro delas mesmas, antropofagicamente.  Explodem-se tornando-se fagulhas líricas em céus de intestinos delgados. Bombons-bombas. Bananas de dinamites: “Explodindo as máquinas, explode-se as pessoas.” Há qualquer coisa de anarco-surrealista- bretoniano em tuas palavras desuniformizadas que reivindicam a ruptura com o sistema vigente, econômico, político, social, moral. Sombriamente lanço-me de volta ao pensamento de um anarquista francês que sintetizo em poucas linhas: “Alhures, pode-se então, perguntar-se com certa inquietação o que nos reserva um mundo onde inúmeras relações cegas são estabelecidas. Por exemplo, entre o homem e o objeto não realmente desejado, escolhido, trabalhado, interpõem-se a máquina estacando a emoção. As formas tornadas anônimas são projetadas por um gesto automático que, excluindo toda intervenção, assepsia o ambiente até o vazio absoluto.  Ainda que não tenha se apercebido desse pequenos detalhe analogicamente observados por mim – Como Explodir Caixas Eletrônicos  toca sensivelmente nesta questão que é pluriuniversalmente atual. Daí a importância e grandeza da tua obra.
Como Explodir Caixas Eletrônicos, é um opúsculo de 04 páginas somente, mas que o leitor o lerá de um arroto só, e que certamente o fará repensar esse mundo atual e decadente e desumano em que vivemos.
Eis um trecho que colhi:
(...) “A bateria do homem tá fraca. Comemos manteiga de breu com pão de borracha.         Na mesa, o plano: como explodir caixas eletrônicos. Mordo o papel. A coisa lambe o  plástico. O fio de tênia se rompe no intestino delgado. A língua solitária lambe o vazio. As cédulas de dinheiro. Iluminar a rua da noite com velas nucleares. Explodindo as máquinas, explode-se as pessoas. Essa gente não agüenta um curto circuito. Explodir a massa consumidora pra salvar a carne viva que está congelada na geladeira. Vomitei graxa. Consumo sumo. As coisas que fabricamos tem sentimento. Nós produtores estamos dormentes. Vivo com esta cabeça de plástico nu dentro da roupa. Sonho explodir a realidade. Vidros de remédio. Canos. Cabos. Do tudo, todas as partes. Todas as pontas são meladas de cuspe. De maneira bem lenta as coisas são colocadas no ânus. A pia geme de orgasmo recebendo os jatos de água que saem da torneira entrando no ralo.
As coisas que fabricamos nos consomem. Somem...

Manaus, 31 de janeiro de 2013